Da relação entre dimensão e base

Ainda na onda de descrever conceitos de Álgebra Linear de um jeito mais natural, quer dizer, sem base, trago uma questão muito séria aqui: por que definir dimensão como a cardinalidade das bases? Que coisa terrível estabelecer algo tão natural como dimensão sobre algo tão arbitrário como base! Aqui proponho duas alternativas. A primeira me foi sugerida por um amigo quando discutíamos esse assunto, mas eu prefiro a segunda, que não lembro de ter encontrado em lugar nenhum. As duas definições propostas são, obviamente, equivalentes à definição padrão e, portanto, as três se sustentam sobre os mesmo fatos, que também serão aqui demonstrados.

O principal ingrediente pra definir apropriadamente dimensão de um espaço vetorial é enxergar conjuntos linearmente independentes como conjuntos de direções independentes. Informalmente, queremos que a dimensão de um espaço vetorial expresse o número máximo de direções independentes no espaço.

Seja um -espaço vetorial, sem qualquer restrição. Pra quem acredita no Axioma da Escolha, mais especificamente na sua manifestação como Lema de Zorn (espero que todo mundo), possui uma base, ou seja, existe um cardinal e um conjunto l.i. que gera . Então existe um isomorfismo , onde é a base canônica de .

Invoquei o Lema de Zorn pra dar conta de espaços vetoriais quaisquer. No caso em que é finitamente gerado, não há necessidade de ir tão longe: dado um conjunto gerador finito l.d., é possível eliminar elementos de forma apropriada até obter um conjunto gerador l.i. – em outras palavras, uma base. Feito isso, temos um isomorfismo pra algum .

Pronto, agora podemos deixar base pra lá, só precisávamos mostrar que pra todo existe um cardinal tal que .

Essa definição deixa mais ou menos clara a relação entre dimensão e o número de direções independentes ao expressar o espaço vetorial como uma soma direta de cópias do corpo, que nada mais é do que uma colagem de direções independentes. É óbvio que, nessa definição, dimensão coincide com a cardinalidade de uma base de . Provaremos em breve que todas as bases tem mesma cardinalidade.

A segunda – e, na minha opinião, melhor – alternativa é mais direta:

Pra mostrar que a definição acima funciona, vamos provar que qualquer conjunto gerador satisfaz para qualquer conjunto l.i. . Novamente, se é finitamente gerado, a coisa é um tanto simples e decorre de um resultado conhecido como Princípio de Substituição de Steinitz.

Uma vez que é gerador, é possível encontrar tais que . Ao menos um coeficiente dessa soma é diferente de zero, afinal é l.i. e, portanto, . Sem perda de generalidade, vamos tomar . Disso segue que Isso significa que podemos substituir por de modo que é um conjunto gerador.

Agora, podemos escrever . Da independência linear de , devemos ter , então para algum . Assim como fizemos com e , podemos substituir por e obtemos novamente um conjunto gerador.

Repetindo esse processo reiteradamente, se , substituímos elementos de pelos elementos de . Se , então encontramos elementos de que geram , incluindo os demais elementos de , contrariando a hipótese inicial de que é l.i.

Pro caso em que não possui conjunto finito de geradores, precisamos apelar novamente pro Lema de Zorn, que nos garante que, dado l.i., existe uma base tal que . Dessa forma, é suficiente provar que . Também podemos e vamos assumir sem qualquer prejuízo que .

Cada possui uma única decomposição da forma com e para todo . Seja o conjunto finito de todos os vetores que aparecem na decomposição de . Façamos, então, . Note que é o subconjunto de composto por todos os vetores necessários para gerar . Porque é infinito e cada é finito, vale (aqui tem mais um pouco de Axioma da Escolha).

Suponhamos que . Então , o que implica que existe um vetor . Por hipótese, gera , então é possível escrever com para todo . Por outro lado, cada pode ser escrito com combinação linear de vetores de . Ou seja, pode ser escrito como combinação linear de vetores de , contrariando o fato de que tal conjunto é l.i. Assim, temos , como desejado.

Feito tudo isso, temos que todo conjunto gerador tem cardinalidade maior ou igual que qualquer conjunto l.i. Como bases são conjuntos geradores e l.i., todas as bases têm a mesma cardinalidade, que é justamente o máximo de , ou seja, a dimensão do espaço. Aliás, de posse disso é possível provar o Princípio de Substituição de Steinitz pra espaços vetoriais quaisquer, o que fica de exercício para quem está lendo.

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