É comum ouvir por aí que determinante de matrizes é algo arbitrário com propriedades mágicas, o que contrasta com a suposta simplicidade do conceito, que é ensinado até mesmo no ensino médio. Mas ao contrário do que muitos dizem, a Matemática não é o reino da abstração sem sentido. Então resolvi escrever essa publicação descrevendo uma abordagem em que a definição surge naturalmente a partir de algumas considerações geométricas e todas as boas propriedades se tornam triviais. Essa abordagem pode ser encontrada parcialmente neste vídeo do 3B1B e nestas notas de aula do Prof. Sheel Ganatra da University of Southern California. Infelizmente, desconheço referências em português.
A fórmula padrão de determinante é simples nos casos de matrizes e :
A partir disso, a situação fica meio insustentável. Para uma matriz temos que onde é o grupo de permutações do conjunto , ou seja, se, e somente se, é uma bijeção, e é o sinal de , i.e., As expressões e são facilmente deduzidas da equação .
Agora vamos abandonar tudo isso e começar do começo: nunca ouvimos falar de determinante, só estamos interessados em estudar geometria plana e vamos usar o poderoso ferramental da Álgebra Linear. Faremos tudo do jeito mais pedestre possível.
Queremos desenvolver uma noção de volume em . Pra isso, vamos construir um mapa tal que é o volume do paralelepípedo gerado pelos vetores .
O paralelepípedo gerado pela base canônica – onde , e assim por diante… – é um cubo de aresta unitária, de modo que faz sentido tomá-lo como unidade de referência, i.e.,
De maneira geral, se o conjunto é l.d., então o paralelepípedo gerado por eles é uma figura de dimensão menor que . Nesse caso, queremos que seu volume seja nulo da mesma forma que um segmento de reta tem área nula e uma figura plana tem volume tridimensional nulo. Por outro lado, se é l.i., então faz sentido que tenha volume estritamente positivo. Assim,
Além disso, se esticarmos ou encolhermos um dos vetores que geram o paralelepípedo, também é de se esperar que o volume seja alterado na mesma escala:
Vejamos o caso de onde é a área. Dados , , um mero desenho revela que
No caso de , o desenho fica um pouco mais complicado, mas ainda é possível deduzir com alguns rabiscos que, dados , , o volume canônico é dado por
Nos dois casos, temos onde é uma forma multilinear alternada que satisfaz .
Como estamos trabalhando com espaços vetoriais, é sempre interessante buscar coisas que manifestem linearidade. Em analogia ao uso de produto interno pra construir uma noção de tamanho definindo a norma , convém usar uma estrutura multilinear pra construir .
Por uma questão de completeza, vamos definir multilinearidade e alternância em geral. Sejam e espaços vetoriais sobre . Um mapa é multilinear se é linear em todas as coordenadas: para . Se , então é uma forma multilinear.
Dizemos que o mapa é alternado se é nulo sempre que duas entradas distintas recebem o mesmo vetor:
Uma alternativa à definição de mapa alternado é a definição de mapa antissimétrico: para . Se tem característica diferente de , uma forma multilinear é alternada se, e somente se, é antissimétrica: Pra com característica igual a , alternância implica em antissimetria, mas a recíproca pode falhar (abrindo as contas da equivalência fica claro que o sentido precisa que ). Formas antissimétricas são de particular interesse porque indicam orientação: uma permutação ímpar nos elementos de uma base corresponde a uma mudança de orientação.
A partir de agora, vamos muito oportunamente economizar notação e denotar por uma base de .
Teorema 1Existe uma única forma multilinear alternada satisfazendo .
A existência é óbvia. A unicidade pode ser provada com algumas contas, mas vamos aplicar um outro método de demonstração que é bem recorrente na Matemática: apelar pra definições que trivializam o resultado. No caso, vamos recorrer ao produto cunha.
Dado , o -ésimo produto cunha de é o espaço quociente onde é o subespaço gerador por tensores em que existem tais que . Denotamos a classe de equivalência de por
Operacionalmente, é gerado por vetores da forma , onde é um produto multilinear alternado tal que e o conjunto é uma base de . Tal base é formada por todas as possíveis escolhas de elementos distintos dum conjunto com elementos, logo,
Teorema 2Propriedade Universal do Produto CunhaSe é uma forma multilinear alternada, então existe uma única transformação linear tal que
DemonstraçãoA existência e a unicidade de é garantida por construção. A transformação é completamente determinada pelos seus valores na base : .
Estamos interessados em formas multilineares alternadas definidas em . O produto cunha é um espaço vetorial unidimensional, com base . Dessa forma, dados quaisquer , temos que para algum .
Demonstração do Teorema 1Sejam formas multilineares alternada satisfazendo . Sejam as formas lineares induzidas respectivamente por e segundo a Propriedade Universal. Em particular, . Então, por , Ou seja,
Pronto! Agora temos que dado por , onde é a única forma multilinear alternada que satisfaz , está bem definido e dá o que já conhecemos em e .
Isso, por si só, já é o suficiente pra definir determinante de uma matrizes quadrada real de ordem como , onde é a forma linear induzida por . Esse número, cujo sinal indica se preserva ou não orientação, nada mais é do que uma medida da deformação de volume gerada por . Mas, pra evitar ficar dando voltas e causar confusão, vou definir determinante de forma mais geral. Este pequeno comentário serve para motivar a definição que trago abaixo.
Uma transformação linear induz uma transformação linear dada por . Como é unidimensional, é multiplicação por um escalar, tal escalar é precisamente , i.e.,
Voltando a , usando e , é fácil verificar que e
Usando o fato de que a entrada da representação matricial de na base é a componente de nada direção de , obtemos a fórmula geral de determinante . Só que a definição não depende de base, então não importa a base na qual escrevemos a representação matricial de , seu determinante é o mesmo.
Feito tudo isso, algumas propriedades se tornam óbvias. Primeiro, se é a identidade, então Em segundo lugar, algo que já estava implícito há algumas linhas: afinal equivale a dizer que existem tal que , i.e., é l.i.
Temos também que então , o que implica que Disso segue que, se é invertível, então , o que nos dá
Por fim, de modo que
Acredito que isso seja o suficiente pra convencer quem quer que seja de que determinante não é algo tão arbitrário. Aliás, não é nada arbitrário, está profundamente ligado às noções de volume e orientação que apreendemos do plano e do espaço tridimensional. Talvez a parte de orientação tenha ficado a desejar, quem sabe num próximo texto eu fale mais sobre o tema…