Anotações a “Ética a Nicômaco” 1 e 10.6–9

Observações por ocasião da leitura de (Vigo 1997).

A vida prática ( ), entendida como conjunto de ações particulares ( ), só é racional ( ), ou racionalmente justificável, se, e somente se, em toda e qualquer ação particular , existe ao menos um fim assumido explicitamente como fim último ( ) da vida.

Em forma lógica:

i.e. um tal, que responda ao: “Para quê?” de toda ação, não individualmente, por referência aos fins particulares de cada uma, mas em conjunto, quer dizer, enquanto constituem uma vida humana, ou uma única ação distentida no tempo.

A ferraria ( ), que se ocupa, entre outras coisas, da produção de ferraduras para cavalos ( ), está subordinada à arte da hípica ( ), que atende ao bem do cavalo em geral e, em particular, ao seu treinamento para atuar em combate ( ), e a hípica está, por sua vez, subordinada à estratégia ( ), que constitui a arte própria do encarregado de conduzir os exércitos à vitória ( ).

Em esquema:

O trecho introdutório de EN 1.1 (1094a1ss):

Toda arte ( [téchne], toda investigação ( [méthodos]) e, do mesmo modo, <toda> ação ( [práxis]) e <toda> decisão deliberada ( [proaíresis]) parece aspirar a certo bem ( [agathoû tinós]). Por isso se disse com razão que o bem ( [tagathón]) é aquilo a que todas as coisas aspiram,

é equivalente a:

Se há um ponto de chegada para cada caminho particular sobre a face da Terra, então deve haver um único ponto de chegada, idêntico para todos os caminhos sobre a face da Terra,

ou, em forma lógica:

onde denota ação; , fim; e o predicado binário , a relação “  é fim de  ”?

A característica de autossuficiência remete pois, de modo direto, ao caráter de estado ideal próprio da representação da felicidade, aludindo só de modo indireto à hierarquia dos fins como tal.

Assim como “fim” se diz per prius do ( ) fim objetivo (finis qui ou cuius gratia), i.e. da coisa apetecida enquanto termo da apetição, e per posterius do ( ) fim formal (finis quo ou subjetivo), i.e. da consecução de ( ) enquanto quietação do apetite na posse efetiva do bem apetecido, assim também, do ponto de vista estrutural, na noção de fim “fim último” estão implicadas proporcionalmente duas razões formais: a título constitutivo ou primário, o que em tal fim é objetivo, i.e. ( ) o ser maximamente honesto, ou sumamente perfeito, e, a título derivado ou secundário, o que nele é subjetivo, i.e. ( ) o ser maximamente deleitável, ou autossuficiente. Se, contudo, o que se levar em consideração for o caráter de autossuficiência como tal, então “fim último” denotará diretamente (in recto) a quietação do apetite, concebida como um “estado ideal”, conotando apenas indiretamente (in obliquo ou praesuppositive) a honestidade do bem apetecido, fundada na primazia hierárquica dele entre todos os fins. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, à consideração do caráter de perfeição absoluta.

Só se pode chamar a um indivíduo propriamente “feliz”, uma vez que ele já tenha morrido e se esteja, destarte, em condições de saber como ele chegou finalmente ao término de sua vida, mas não enquanto ainda estiver vivo, pois nesse caso o indivíduo não está ainda posto a salvo da possibilidade de cair nas piores desgraças.

Lida em sentido lógico-semântico restritivo, a tese de Sólon vem a dizer pouco mais ou menos que o conjunto das proposições verdadeiras em que o predicado “feliz” ( ) se diz de qualquer indivíduo humano ( ) é um subconjunto do conjunto das proposições de pretérito ( ), i.e. aquelas em que o verbo de ligação “ser” se declina em tempo passado. Noutras palavras, para todo enunciado apofântico da forma , será verdadeiro, se for também um caso de , ou um elemento de :

Mas isto não parece conveniente. Se, com efeito, fora preciso aguardar o fim da vida humana para então considerar alguém feliz, não porque agora o seja, mas por tê-lo sido antes, ter-se-ia o inconveniente de não poder chamá-lo verdadeiramente feliz quando o é, mas de o poder chamar assim mais tarde porque o foi. Ora, a verdade de uma proposição de pretérito depende da verdade da mesma proposição no presente ( ), pois é verdade agora que foi por ter sido verdade antes que era :1

É verdade, e.g., que “Sócrates se sentou” porque, em algum tempo passado, era verdade que “Sócrates se senta”. Assim, ao causar que “Sócrates se senta” seja verdade em , Sócrates causa que “Sócrates se sentou” também o seja em todo posterior a . O fundamento ontológico de toda e qualquer proposição contingente de pretérito é o fundamento ontológico da proposição correlata de presente, . A causa da verdade de não precisa existir, enquanto for verdadeira. Basta para a verdade de que tenha havido algo que causou no passado a verdade de .

Aristóteles não ignora de modo algum a força motivadora do prazer; mas, em face dela e precisamente em atenção a ela, enfatiza o fato de que o prazer, como tal, não pode proporcionar por si só critérios adequados de decisão, nem deve ser a pauta última que oriente a eleição de nossas ações.

or ser essencialmente o fim último de toda a vida humana, deve a felicidade consistir naquilo a que convém per se primo e maximamente a razão de fim, como é evidente pelos termos. De fato, é fim último simpliciter aquele a que per se primo e maximamente convém a razão de fim. Ora, ao prazer, i.e. ao bem deleitável não convém per se primo e maximamente a razão de fim.

“Fim”, com efeito, se diz num duplo sentido, qual seja:

  1. no de “fim qui” (ou “cuius gratia”), que é a coisa ou o objeto finalizador, e

  2. no de “fim quo”, que primariamente é o uso ou a posse da coisa ou do objeto finalizador e, por conequência, é a quietação do apetite, i.e. a fruição por ele do fim obtido ou na posse do fim.

Ora, é evidente que, per se primo e maximamente, a razão de ‘fim’ convém ao fim qui, não ao fim quo e muito menos à quietação, i.e. à fruição que naturalmente se segue ao fim quo, já porque o fim qui está para o fim quo como o objeto para o ato, que lhe é naturalmente anterior em ato, por ser o que o especifica e constitui sua razão de ser, já porque ao fim qui convém per se primo e maximamente a razão de finalização, i.e. o mover na qualidade de causa final o apetite, e só per posterius e em dependência dele ao fim quo, razão pela qual é chamado “fim sob fim” (finis sub fine).

Dado pois que o prazer, i.e. o bem deleitável, é essencialmente fim quo secundário, por ser essencialmente quietação fruitiva do fim qui já possuído, é impossível que ao prazer convenha per se primo e maximamente a razão de “fim”, senão que isto é próprio do bem honesto. Eis por que S. Tomás escreve:

Ora, entre os bens se encontra algum que é bem simpliciter e per se, como os bens honestos, que são apetecidos como fim por si mesmos, ainda que conduzam a outra coisa, pois em todos os <bens> honestos coincide a utilidade com honestidade, salvo no <bem> último, que é o fim dos fins, o qual há de ser apetecido somente por causa de si.2

Esta é a razão por que o bem honesto é o analogado supremo de “bem”, já que per se primo e maximamente lhe convém a razão de “fim”. Com efeito, o analogado supremo de “bem” é o fim, e não os meios, como os bens úteis, e o fim a que per se primo e maximamente convém finalizar é o bem honesto, não o deleitável, ao qual só per posterius convém finalizar.

Vigo, Alejandro G. 1997. La Concepción Aristotélica de La Felicidad: Una Lectura de “Ética a Nicómaco” 1 y 10.6–9. Universidad de Los Andes: Instituto de Filosofía.

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