Argumento ontológico (1)

Formulação original

Formulação de Anselmo

(1) Por ‘Deus’ se entende o máximo pensável; (2) ora, é maior existir na realidade do que apenas no entendimento; (3) logo, se o máximo pensável existisse apenas no entendimento, poder-se-ia pensar algo maior do que o máximo pensável, o que é absurdo. (4) Por conseguinte, o máximo pensável existe não apenas no entendimento, mas também na realidade.1

Formulação de Gaunilo

(1) O mais perfeito em dado gênero de coisas possui em grau sumo todas as perfeições de tal gênero (e.g., a ilha perfeitíssima); (2) ora, a existência é uma perfeição sem a qual nada pode ser o mais perfeito em seu próprio gênero; (3) logo, tudo o que é o mais perfeito em seu próprio gênero existe na realidade.2

Réplica de Anselmo

(1) Aquilo que, sendo perfeitíssimo em seu gênero, pode ser pensado, sem contradição, como não existente em algum momento e lugar não existe necessariamente; (2) ora, o máximo pensável não pode, sem contradição, ser pensado como não existente em algum tempo e lugar; (3) logo, o máximo pensável existe necessariamente. Corolário: Por conseguinte, o argumento ontológico só se aplica ao caso de Deus.

Reformulações escolásticas

Objeções de Tomás de Aquino

(1) A proposição ‘Deus é’ é evidente quoad se, mas não quoad nos, porque não é imediatamente evidente à inteligência humana que o predicado ‘é’ esteja contido no sujeito ‘Deus’; logo, necessita ser demonstrada a posteriori, ou pelos efeitos, i.e. por demonstração quia. (2) Tampouco é certo que todos entendam por ‘Deus’ o máximo pensável, senão que há entre os homens diversas concepções de Deus. (3) Que não possa ser pensado senão como existente não implica que exista de fato, i.e. do plano lógico não se pode saltar para o real.3 Em suma, ‘Deus é’ pode ser necessário quoad se, mas é contingente quoad nos.

Formulação condicional de Boaventura

(1) Nada é mais verdadeiro do que as proposições tautológicas, i.e. da forma ; (2) ora, se Deus é Deus, então Deus existe, porque a essência divina é sua própria existência, assim como, e.g., se ‘o ótimo é ótimo’, então ótimo existe; (3) mas, em razão da premissa (1), não pode ser falso o antecedente ‘Deus é Deus’; (4) logo, Deus existe.4

Formulação corroborativa de Duns Escoto

(1) Se Deus é pensável sem contradição, então Deus é possível; (2) ora, Deus é pensável sem contradição; (3) logo, Deus é possível. (4) Mas se Deus é possível, então existe necessariamente, pois um ser infinito não pode ser meramente possível; (5) ora, em razão de (3), é o caso de que Deus é possível; (6) logo, Deus existe necessariamente.5


  1. A formulação original de Anselmo tem, em verdade, forma apagógica, i.e. busca pôr em evidência que a negação da existência de Deus implica um absurdo lógico. Com efeito, por ‘Deus’ se entende o máximo pensável; ora, é maior existir in re do que somente in intellectu; logo, o máximo pensável deve, por definição, existir in re. Por isso, afirmação sustentada pelo ateu de que Deus não existe equivale ao paralogismo: ‘O máximo pensável não é o máximo pensável’, ou seja, ‘não existe in re o que, por ser o máximo pensável, há de existir in re’. Nesse sentido, o argumento ontológico não pretende ser uma demonstração direta da existência de Deus, mas uma prova indireta, fundada na inconsistência lógica a que conduz sua negação.↩︎

  2. Gaunilo parece atribuir a Anselmo a assunção tácita, no argumento original, da tese de que a existência seria uma nota necessária à perfeição das coisas. Por isso, se o que é máximo em dado gênero possui todas as perfeições de tal gênero, não lhe pode faltar a existência real. Portanto—conclui Gaunilo—, se se pode pensar um máximo em dado gênero, deve existir na realidade, o que é falso; logo, o argumento de Anselmo não é demonstrativo.↩︎

  3. Noutras palavras, que seja pensado, no plano lógico-conceitual, como necessariamente existente não implica que necessariamente exista. Com efeito, embora seja necessária em si mesma, a conexão entre ‘Deus’ e o predicado ‘é’ ou ‘existe’ não é evidente para nós (quoad nos), razão por que precisa ser demonstrada. Por onde se vê que há necessidades que só se descobrem a posteriori, i.e. juízos que, em terminologia kantiana, seriam analíticos a posteriori.↩︎

  4. Boaventura propõe o argumento anselmiano sob a forma, não mais de uma reductio ad absurdum, mas de um silogismo condicional. Posto em forma, o argumento completo de Boaventura reza assim: (1) Tudo o que se predica de si mesmo é maximamente verdadeiro; (2) Ora, Deus é, por definição, sua própria existência; (3) Logo, a proposição ‘Deus existe’ (= ‘Deus é Deus’) é maximamente verdadeira (por 1). (4) Pois bem, é evidente que o ótimo é o ótimo (por 1); (5) ora, o ótimo é, por definição, o mesmo que ser perfeitíssimo; (6) logo, o ótimo existe, dado que um ser perfeitíssimo não o seria se não fosse atual. (7) Pois bem, se o ótimo é o ótimo, então o ótimo existe (por 5–6); (8) mas o mesmo vale para de Deus: se, com efeito, Deus é Deus, Deus existe (por 3); (9) ora, é o caso de que Deus é Deus (por 2). (10) Logo, Deus existe.↩︎

  5. Escoto pretende reforçar o argumento anselmiano destacando a possibilidade ou pensabilidade do conceito ‘Deus’. A pensabilidade de um conceito, por não conter notas internamente incompatíveis ou contraditórias, é sinal de sua possibilidade real; ora, é evidente que ‘Deus’ é pensável sem contradição, já que os próprios ateus, para lhe negarem a existência, precisam antes concebê-lo no entendimento; logo, Deus é possível. No caso particular de Deus, porém, a mera possibilidade implica per se a existência real porque, sendo ele o máximo pensável—em terminologia de Anselmo—, não pode ser apenas pensável, sob pena de não ser id quo maius cogitari nequit. Para Escoto, em síntese, se Deus é possível, então existe necessariamente.↩︎

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